Dor neuropática, retrato de uma dor enigmática
A dor neuropática é, para a maior parte das pessoas, uma ilustre desconhecida. Talvez por essa razão, tanto pacientes quanto familiares julguem muitas vezes que estão perante uma dor “psicológica”. Nada poderia estar mais errado, embora nem sempre seja de diagnóstico fácil a dor neuropática é uma dor real, cujas causas podem ser identificadas e cujo tratamento é imperativo.
Um “simples” braço partido que tem de ser operado, um ataque de zona, ser sujeito a radioterapia ou ter diabetes são situações muito diferentes, mas que têm em comum a possibilidade de serem um ponto de partida para a dor neuropática.
Esta dor – que os pacientes descrevem como tipo picada, tipo formigueiro, tipo choque ou tipo queimadura – é causada por uma alteração ou lesão do sistema nervoso periférico (nervos) ou central (cérebro e espinal medula).
Como nos explica o neurologista António Vasco Salgado, entre as causas que têm como origem lesões do sistema nervoso periférico estão doenças metabólicas como a diabetes, lesões traumáticas ou compressivas, infeções como o herpes zóster ou o VIH e efeitos da radioterapia, entre outras. Entre as relacionadas com o sistema nervoso central estão lesões que envolvam o chamado núcleo talâmico, como os acidentes vasculares cerebrais e a esclerose múltipla ou lesões que envolvam a medula, como é o caso das lesões pós traumáticas, pós radiação ou pós cirúrgicas.
Sempre que é exequível, o ponto de partida é intervir na origem da dor, mas mesmo quando não existe essa hipótese, isso não significa que não haja tratamento: a dor em si pode ser tratada. Como refere o neurologista António Vasco Salgado “regra geral e sempre que possível a intervenção terapêutica tem como objetivo corrigir a causa, como no caso da diabetes, das situações carenciais [como o alcoolismo crónico] e das lesões compressivas, mas também controlar a dor através de terapêutica específica.”
O aparecimento desta dor raramente é simples ou linear, pelo que conseguir explicá-la também não o é. Para entender melhor os mecanismos por detrás dela e o que a distingue de outros tipos de dor, impõe-se uma explicação prévia, ainda que muito simplista, sobre o funcionamento do nosso sistema nervoso.
Vamos a ela: é o cérebro que processa e coordena tudo no nosso corpo, mas para isso precisa de uma forma de receber e enviar informação. A espinal medula também parte do sistema nervoso central, estende-se do cérebro para baixo, ao longo da coluna e dela partem nervos (sistema nervoso periférico) em direção a todas as partes do corpo.
Os nervos são as vias de comunicação do cérebro não só com o restante corpo, como com o mundo exterior, já que são eles que transportam as mensagens dos órgãos dos sentidos para o cérebro e que possibilitam também o percurso inverso: o envio das “instruções” do cérebro para outras partes do corpo. É este mecanismo que possibilita ações de causa-efeito tão simples como decidirmos tirar o casaco se está calor ou retirar rapidamente o dedo se nos picamos numa agulha. E o processo é sempre semelhante: recebemos um estímulo, interno ou externo, através dos nervos, a espinal medula conduz a informação até ao cérebro, este decide o que é apropriado fazer e envia de novo através da espinal medula e até aos nervos as instruções.
Se algo danifica ou lesiona algum ou alguns dos nervos que nos percorrem o corpo, (a tal cirurgia, ataque de zona, radioterapia ou diabetes, entre muitas outras) os nervos afetados vão transmitir informações “erradas” ao cérebro. Na mesma maneira, se a lesão é, não nos nervos, mas na parte do cérebro que interpreta e processa a informação sensorial (o tálamo), o mesmo pode acontecer. Resumindo: a dor neuropática tem origem em alterações na transmissão (nervos) ou na leitura (cérebro) do estímulo doloroso.
Um tipo de dor neuropática: a dor fantasma
A dor fantasma, ou seja, a sensação dolorosa num membro que já não existe pelo facto de ter sido amputado, é talvez uma das mais estranhas formas de dor neuropática conhecidas e sobre a qual os investigadores se debruçam há vários séculos. O cirurgião francês Ambroise Paré fez no século XVI, aquela que viria a ser talvez uma das mais famosas descrições sobre o fenómeno: “Na verdade é uma coisa maravilhosamente estranha e prodigiosa, que seria difícil acreditar (salvo por aqueles que a viram com seus próprios olhos e a ouviram com os seus próprios ouvidos), que os pacientes se queixem amargamente, vários meses, após a amputação, de ainda sentirem uma dor excessivamente forte no membro já amputado.”
António Vasco Salgado explica que embora existam múltiplas teorias quanto à génese da chamada dor fantasma, a mais recente implica uma perversão da estimulação visual e da neuroplasticidade do córtex sensitivo que ocorreria após a amputação do membro.
Dor neuropática: conhecê-la para a gerir melhor
Em Junho de 2003, a Direção Geral de Saúde publicou uma circular normativa que institui a dor como o 5º sinal vital. Em termos práticos, esta medida significa que se considera como boa prática clínica em todos os serviços prestadores de cuidados de saúde, a avaliação e registo da intensidade da dor, à semelhança do que acontece há bastante tempo com os quatro sinais vitais (frequência respiratória, frequência cardíaca, pressão arterial e temperatura.)
Há que distinguir, no entanto, dois tipos de dor muito diferentes: a dor aguda, que é um sintoma e “avisa” o organismo da presença de uma ameaça externa ou interna, e, muito diferente desta, a dor crónica – que não tem qualquer função protetora. Além do sofrimento que provoca e da quebra de qualidade de vida que implica, a dor prolongada acaba também por dar origem a alterações funcionais que podem contribuir para o aparecimento de outras doenças tanto orgânicas quanto psicológicas.
Quando a dor está presente mesmo sem existir uma lesão identificável ou persiste além da cura da lesão que lhe deu origem estamos perante dor crónica e, nesse caso, a dor deixa de ser um sintoma para passar a ser uma doença em si mesma.
O estudo Pain in Europe demonstra bem a dimensão deste fenómeno: a dor crónica atinge um em cada cinco adultos na Europa, o que representa 19 por cento da população do continente. Mas, além da grandeza dos números, o estudo reflete ainda outro fenómeno preocupante que é o desconhecimento existente sobre esta condição por parte dos próprios pacientes.
Nas entrevistas realizadas, concluiu-se que existe muita falta de informação entre os pacientes. O estudo revela, por um lado, que a informação acerca de novos tratamentos para a dor crónica é recebida passivamente e não através de uma procura ativa por parte dos doentes, por outro, que um terço dos doentes estão mal informados sobre novos métodos de gestão da dor.
A pesquisa revelou ainda que muitas pessoas que sofrem de dor crónica têm uma atitude resignada face à sua condição e ao tratamento da sua dor, pelo que reforça a necessidade urgente de estabelecer uma verdadeira parceria entre médicos e pacientes baseada na compreensão mútua e troca de informações.
Atualizado a: