Enurese: o drama do chichi na cama
Não é tão invulgar como se pensa que crianças com mais de cinco anos não se consigam controlar durante a noite e acabem por fazer chichi na cama. Em grande parte dos casos, o tempo é a melhor solução, mas, enquanto isso, é essencial saber lidar com a situação tanto para ajudar a resolvê-la, como para não destruir a autoestima da criança.
A mãe e filho de sete anos entram no consultório médico. A mãe de semblante impaciente, o filho com ar comprometido. É então que o médico faz a pergunta da praxe que dá início à consulta: “Então, o que vos trás por cá?” A mãe consulta o filho com o olhar, como quem pergunta “contas tu ou conto eu?” e, perante o silêncio envergonhado da criança, dispara: “Com esta idade e ainda faz chichi na cama!”
Esta cena, frequente em consultórios de urologistas, cirurgiões pediátricos e psicólogos clínicos, tem na sua matriz um princípio profundamente errado: a culpabilização e humilhação da criança que não controla os esfíncteres, ou seja, da criança que sofre de enurese.
João Goulão, cirurgião pediátrico, explica-nos que o esvaziamento cíclico da bexiga é resultado da ação do sistema nervoso voluntário e involuntário. A continência surge como resultado de um processo de maturação, sendo que “o controlo voluntário começa de dia, através do controle do esfíncter (espécie de torneira) e do detrusor (musculo da parede da bexiga que permite, ao relaxar-se, o enchimento e, com a contração, promove o esvaziamento)”.
De acordo com o cirurgião pediátrico, por enurese entende-se a micção involuntária durante o sono (podendo ou não existir também perdas diurnas) depois dos cinco ou seis anos que suceda com alguma regularidade (por norma mais de 2 vezes por semana), uma vez que o descuido ocasional não pode ser valorizado da mesma forma e não tem o mesmo significado.
Os pais preocupam-se, claro, com o “chichi na cama”. Não só por considerarem que pode ser sintomático de algum problema, como pelo transtorno que causa e pelo impacto que acaba por ter na auto-estima, qualidade de vida e na própria socialização da criança (que frequentemente acaba, por exemplo, por não fazer programas que envolvam dormidas com receio de noites molhadas.)
Como avaliar, como tratar?
“A enurese representa um sintoma e não uma doença. Na maioria dos casos, mais de 80 por cento, surge isolada, e é habitual distinguirem-se dois tipos – primária (em que nunca se chegou a adquirir continência noturna) e secundária (em que houve no mínimo 6 meses de continência noturna prévia)”, esclarece João Goulão. Ainda de acordo com o cirurgião pediátrico, admite-se uma incidência de quase 15 por cento aos cinco anos, sendo mais comum em rapazes, mas, na maioria dos casos, há uma resolução espontânea com o tempo. No entanto, em casos selecionados, e só quando há motivação da criança, o tratamento pode acelerar a evolução.
As modalidades terapêuticas são muitas, o cirurgião João Goulão pratica a medicamentosa (tendo como objetivo reduzir a diurese durante a noite, e aumentar a capacidade da bexiga), e o recurso a alarmes (facilitar o acordar e o reconhecimento da bexiga cheia). Mas atenção: é necessário ter expectativas realistas, mesmo com tratamento o resultado nunca é imediato, e são frequentes as recaídas e ciclos de sucesso sem razão aparente.
Na avaliação médica, refere João Goulão, importa detalhar a história clinica prévia, o desenvolvimento psicomotor, a história familiar (pela influência genética que implica), avaliar a idade em que houve continência diurna, o ritmo e características das micções, o trânsito intestinal (pela associação frequente com obstipação), a caracterização dos hábitos alimentares e de consumo de líquidos e o próprio sono (horários, profundidade, facilidade ou dificuldade em despertar, características, roncopatia e apneia.)
Mas afinal, o que causa este problema? “A enurese é com frequência multifactorial e inclui uma influência genética (história familiar), um atraso na maturação com menor capacidade da bexiga e hiperatividade da musculatura da bexiga (músculo detrusor), um défice de produção de hormona antidiurética com poliúria noturna e alterações do sono”, refere o cirurgião. Já as causas orgânicas representam uma minoria dos doentes (menos de 20 por cento) podendo incluir problemas tão diversos como doenças neurológicas (bexiga neurogénica, epilepsia), doenças do aparelho urinário (como infeções, malformações congénitas, insuficiência renal), doenças endócrinas (diabetes, hipertiroidismo) entre muitas outras.
Saber ajudar a criança que faz chichi na cama!
Ajudar a criança passar por saber em primeiro lugar o que não fazer: “ é importante passar a ideia de que desaprovar é diferente de castigar, e tentar incutir na criança o sentido de responsabilidade e reforço positivo, com recompensa por noites secas”, esclarece João Goulão.
A psicóloga Ana Gonçalves Corrêa frisa mesmo que, independentemente da origem da enurese, a forma como os pais lidam com a situação é muito importante, já que se o fizerem incorretamente, poderá existir um agravamento: “é fundamental que os pais não se zanguem com a criança, assim como não a punam. Inversamente, deverão elogiá-la e até recompensá-la por cada noite em que não o faz.”
A psicóloga refere ainda que, sabendo-se que a situação é penosa e embaraçosa para a própria criança, o assunto deve ser tratado com bastante discrição, pelo que é importante não expor a criança perante outras pessoas, inclusive os seus irmãos e outros familiares.
A nível de medidas gerais para controlar os problemas, Ana Gonçalves Corrêa e João Goulão, referem as mesmas: criar um diário miccional, jantar cedo e restringir a ingestão de líquidos a partir dessa hora, lembrar a criança de ir à casa de banho antes de se deitar e, se possível, os pais devem acordá-la quando se vão deitar para ela urinar de novo a essa hora.
E, por muito que custe durante a noite e com o sono, andar a desfazer e fazer camas, bem como a dar banhos e a mudar pijamas, o uso das fraldas é totalmente desaconselhado: “podem originar um retrocesso e transmitem uma mensagem de falta de confiança para a criança”, explica Ana Corrêa. João Goulão reforça ainda que é importante motivar a criança a ter um papel ativo nestas situações levantando-se para completar a micção na casa-de-banho e participando na limpeza da cama e roupas.
Pode parecer desesperante para pais e filhos, mas procure relativizar: é uma fase e, seja com o tratamento necessário, seja com o apoio dos pais e alguma paciência, vai passar.
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