Cegueira por desatenção: Como é que eu não vi isto?
O nosso cérebro engana-nos. Constantemente. Certamente que já lhe aconteceu não dar conta de coisas que acontecem mesmo à frente do nariz. Neste artigo, vamos levar as suas dúvidas e certezas sobre o que vê a um outro nível. Siga connosco até ao mundo surpreendente dos testes de atenção e descubra como pode ser acometido por uma verdadeira cegueira sem sequer dar conta.
Temos obrigatoriamente de começar com uma sugestão: este texto será infinitamente mais interessante depois de passar pela experiência de ver este vídeo. Para os que não seguiram a nossa recomendação segue-se um apanhado: é-nos pedido um exercício que requer alguma concentração. Há duas equipas, uma vestida de branco outra de preto, ambas têm uma bola e passam-na entre si. A nós é-nos pedido que contemos quantas vezes, ao longo de cerca de 26 segundos a equipa vestida de branco troca a bola entre si. Lá acompanhamos e, no fim, felizes pela nossa perspicácia, chegaremos provavelmente à conclusão que acertámos na resposta: 16 passes.
E é então que nos fazem uma pergunta sem qualquer sentido: viu o gorila? Depois de acharmos que alguém endoideceu, mostram-nos a repetição e, pasmados, vemos um gigante gorila atravessar o recinto entre os jogadores, parar na direcção na câmara, bater com as mãos no peito e seguir em passo pausado. E fica a pergunta, a moer-nos: porque é que eu não vi o gorila?
Mas há mais. Como esta ilusão – chamada o gorila invisível e inicialmente desenvolvida pelos investigadores Daniel Simons e Christopher Chabris – é famosa, muitas das pessoas já a conhecem, pelo que, claro, quando sabemos que o gorila vai aparecer vemo-lo. Para esses, no fim, perguntam: e viu que o cortinado entretanto mudou de cor e que um dos jogadores desapareceu? Claro que a maior parte de nós também não viu. O estudo demonstra que mais de metade das pessoas que não sabe o que vai acontecer não vê nenhum destes acontecimentos.
Confesse, isto é tudo um bocadinho assustador, não é? Porque é que temos tanta dificuldade em ver coisas que não sabemos que vão acontecer quando estamos focados noutras? Ou melhor, nós na verdade vemos, os nossos olhos veem, mas o nosso cérebro não processa a informação.
Tudo tem uma explicação:
A neuropsicóloga Maria João Viana Caldeira, do Centro de Neuróbica do Porto, explica-nos que este fenómeno, largamente estudado, tem um nome: cegueira por desatenção. Ocorre quando não reparamos em algo inesperado pois toda a nossa atenção está direcionada para um estímulo específico.
“O nosso cérebro está constantemente a ser bombardeado com inúmeros estímulos que provém dos órgãos sensoriais. A rede de neurónios do córtex sensorial processa esses estímulos e trabalha em conjunto com outras zonas cerebrais que os priorizam e fazem uma espécie de triagem que determina quais os mais importantes e que devem ser alvo da nossa atenção”, explica a neuropsicóloga. Como resultado desta triagem sensorial, milhões de estímulos não são processados e é por isso que o gorila passa pelo nosso campo de visão sem que se dê por isso.
A neuropsicóloga explica ainda que este mecanismo nos é extremamente útil já que é através dele que conseguimos, no nosso dia-a-dia, filtrar distrações desnecessárias. Mas esta situação também apresenta consequências negativas, isto é, por vezes certos estímulos que seriam importantes passam despercebidos.
Apesar de este e outros testes semelhantes levarem a outro nível a nossa percepção de quanto nos passa ao lado no dia-a-dia, intuitivamente até temos essa noção. Por exemplo: toda a gente sabe que não deve falar ao telemóvel ou enviar mensagens enquanto conduz. Percebe agora porquê? Dificilmente alguém consegue processar todos os estímulos exteriores que lhe chegam, quanto mais estímulos acrescenta, mais probabilidades há de deixar escapar alguns. Juntar o telemóvel à condução é o mesmo que dizer que muito mais do que se passa na estrada lhe vai passar despercebido. E isso, como sabe, é meio caminho andado para o acidente.
Há observadores inocentes e observadores especialistas?
Maria João Viana Caldeira refere que as capacidades de atenção seletiva poderão estar relacionadas com o QI na medida em que são tributadas na maioria das tarefas cognitivas, desta forma podem ser causalmente relacionadas com o desempenho cognitivo geral do individuo. Mas atenção, isso não quer dizer que pessoas muito inteligentes estejam a salvo desta cegueira. De resto, isto não quer sequer dizer que observadores considerados especialistas estejam a salvo desta cegueira.
Trafton Drew, da Harvard Medical School’s e do Brigham and Women’s Hospital, decidiu tentar perceber se o teste do gorila invisível funcionava apenas perante observadores não treinados e naïfs. Por isso decidiu aplicar uma versão do teste a pessoas consideradas peritas em observação de imagens: médicos radiologistas, que todos os dias percorrem com os olhos imagens de radiografia, TAC e Ressonância Magnética em busca de sinais, ainda que mínimos, de cancro.
Apresentou a 23 radiologistas reputados imagens de várias TAC toráxicas, solicitando aos médicos que identificassem e marcassem o sítio de nódulos cancerígenos nos pulmões e, ao mesmo tempo, monitorizava o movimento de olhos que os médicos faziam.
Mas o que 83 por cento deles não identificou foi a imagem do gorila que lá foi colocada, embora os monitores de movimento ocular tenham demostrado que quase todos os médicos olharam vários segundos directamente para a imagem do animal. Mais: o gorila era cerca de 45 vezes maior que a maior parte dos nódulos tumorais, o que equivaleria, em termos tamanho, a ter uma caixa de fósforos nos pulmões.
Dos 23 médicos, 19 não o viram. Porquê? Porque não andavam à procura dele. O erro é de atenção, não de percepção. Ainda assim, diga-se a favor destes especialistas que, mesmo com fracos resultados, conseguiram melhor do que os observadores não especializados do grupo de controlo: dos 25 que participaram nenhum detetou o gorila.
A este propósito, Daniel Simons, um dos autores do estudo original, explicou que este efeito reflete a forma como o nosso sistema de atenção funciona: “nós estamos cientes de apenas um pequeno subconjunto do nosso mundo visual a qualquer momento”, explicou. Ou seja: nós concentramos a nossa atenção sobre os aspectos do mundo que queremos ver, mas ao limitar assim a nossa atenção ao que tentamos ver, a tendência é não nos percebermos ou objetos ou eventos inesperados.
Terminamos com um outro exemplo, desta vez uma campanha do Mayor de Londres. Talvez o ditado popular “de cego e louco todos temos um pouco”, não ande muito longe da verdade.
Fonte: Maria João Viana Caldeira, neuropsicóloga
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