Doença mental na infância
Os bebés e crianças também podem ter doenças psiquiátricas.
Parece um esclarecimento óbvio e um ponto de partida demasiado básico, mas a verdade é que muitos adultos ainda se recusam a acreditar que as doenças mentais existam ou se manifestem em tenra idade. A promoção da saúde mental é importante, mas igualmente importante é procurar ajuda a tempo.
Muitas vezes, mesmo percebendo ou sentindo que alguma coisa não está bem, os pais optam por esperar para ver se a situação se resolve espontaneamente ou escondem a situação por vergonha. Seja por ignorarem que estão perante um problema ou seja pelo constrangimento de o exporem, esta escolha tem uma consequência grave: grande parte das crianças com doença mental não recebe tratamento. E, sem tratamento, a tendência é sempre para o agravamento, não para uma resolução espontânea.
Definir onde acaba a normalidade e começa a patologia mental não é linear. E nas crianças é-o menos ainda. Mas, como explica Margarida Cordo, psicóloga e terapeuta familiar, “existem critérios descritos nas classificações internacionais das doenças e instrumentos de avaliação que permitem, com maior ou menor facilidade, em função da idade e da capacidade de comunicação da criança, entre outros, perceber se se está perante um quadro patológico e de qual se trata.”
Ainda de acordo com a psicóloga, há patologias que surgem mais frequentemente numas idades do que noutras ou que só emergem a partir de determinadas idades, pelo que também os instrumentos de avaliação (vulgo testes) são diversificados e direcionados para certas faixas etárias.
Também Catarina Cordovil, pedopsiquiatra, refere que a distinção entre comportamentos normais e patológicos ou seja, sugestivos de uma doença mental, é muitas vezes difícil. Socorrendo-se das Recomendações para a Prática Clínica da Saúde Mental Infantil e Juvenil nos cuidados de Saúde Primários, explica que um comportamento para ser considerado patológico e por isso um sinal de alarme para os pais e prestadores de cuidados se caracteriza por: “não ser esperado para a idade, por se repetir em várias situações e contextos, ser muito intenso e manter-se ao longo do crescimento impedindo a criança de se desenvolver.”
Estes comportamentos surgem em ambientes problemáticos que se caracterizam pela presença de conflitos, de violência, de negligência, falta de afeto e de respeito mútuo e em que os papéis não são claros para a criança. Embora refira que a dificuldade de distinguir traços de personalidade não adaptativos de sintomas associados a uma doença mental exista em todas as idades, admite que essa dificuldade é ainda mais evidente na infância e adolescência, pelo facto de a personalidade se estar a definir.
A pedopsiquiatra refere que na sua prática clínica as situações que mais frequentemente encontra e trata em crianças são perturbações de comportamento e de humor, seguindo-se das de aprendizagem e ansiedade.
Margarida Cordo refere que a terapia é usada desde tenra idade e quanto mais pequena é a criança, mais é necessário recorrer a metodologias projetivas e mediadoras, como os jogos e os desenhos.
Saber prevenir
Pergunta-chave que, nesta altura, deve ser aquela que mais interessa aos pais preocupados: é possível algum tipo de prevenção para este tipo de doenças? “Há inúmeras recomendações que podem ser dadas, a primeira é que as crianças devem sentir-se desejadas e valorizadas”, frisa Catarina Cordovil.
De acordo com a pedopsiquiatra, além de ser fundamental conhecer a criança, é preciso proporcionar-lhe “espaço e tempo de qualidade nas famílias, tempos para estar, para as ouvir e para brincar com elas, sem estarem permanentemente ‘assombradas’ por tarefas, castigos e TPC (nem que seja durante 10 minutos!).”
O contexto familiar além de afetuoso deve ser pautado pela organização, pelas regras claras e por uma autoridade consistente e respeitadora dos pais. Assim proporciona-se um desenvolvimento afetivo num ambiente de segurança e proteção, o que favorece uma autoestima positiva.
A esta “lista” de recomendações – que se repararmos bem estão ao alcance do senso comum e bom-senso – Margarida Cordo junta outras de comportamentos a evitar como a superproteção, a desresponsabilização, a emissão de mensagens contraditórias na expressão dos afetos e o envolvimento da criança nos conflitos conjugais.
Se por um lado, há que evitar sobrevalorizar comportamentos pontuais ou que podem desagradar mas são próprios das crianças, há também sinais claros de que alguma coisa não está bem que não devem ser ignorados nem negligenciados.
Depressão no bebé
Embora não detalhando casos clínicos devido ao sigilo profissional, a pedopsiquiatra Catarina Cordovil refere que a criança mais nova que acompanhou tinha 10 meses e um quadro de depressão infantil que se manifestava por falta de atividade com uma postura mole, uma expressão apática em que evitava olhar as pessoas, sorrindo poucas vezes e com grande esforço da mãe, pouca curiosidade em relação ao meio envolvente e brincando muito pouco. A par destes comportamentos, era um menino que dormia ciclos de apenas 1 hora, demorando bastante tempo a adormecer.
Se já é difícil para alguns conceber que as crianças possam sofrer de depressão ou outra doença mental, mas difícil será aceitar que um bebé também a possa ter. Mas uma perturbação mental pode ser diagnosticada em idades tão precoces como poucos meses de vida manifestando-se, por exemplo, através de uma recusa alimentar persistente, choro constante e inconsolável ou grande dificuldade em adormecer e manter um sono tranquilo, como refere a pedopsiquiatra Catarina Cordovil.
A literatura refere que a depressão na primeira infância está por norma relacionada com frustrações graves ocorridas no meio familiar e motivadas sobretudo pelas características da relação com a mãe ou seu substituto. São geradas por interrupções prolongadas e/ou frequentes dos cuidados maternais por motivos profissionais, separações reais, doença mental ou física e morte.
Antes dos 6 meses de idade, não devemos falar de depressão, mas antes de uma resposta depressiva. A chamada depressão analítica, que se desenvolve a partir do 2.º semestre, é, como menciona o estudo referido, o “quadro mais precoce e mais grave da depressão no bebé pela rotura da relação com o objeto maternal, sendo que o diagnóstico é feito a partir de critérios de comportamento como: atonia afetiva, inércia motora, pobreza interativa e desorganização psicossomática.”
O termo foi criado por René Spitz a partir dos seus estudos numa creche, em 1979. O psicoterapeuta verificou que as crianças que tiveram relações boas com as suas mães até aos 6 meses, ao entrarem para a creche onde ficavam longas horas e com poucos cuidados, começavam a demostrar um comportamento inicial de choro, que depois evoluía para um comportamento de retraimento, recusando-se a tomar parte nas atividades e a relacionarem-se com que as rodeava. Conclusão: o afeto recíproco entre bebé e mãe (ou outro cuidador) é absolutamente necessário para a saúde física e para o desenvolvimento comportamental do bebé.
A propósito da importância do afeto e dos vínculos na saúde mental da criança, o psiquiatra, pedopsiquiatra e psicoterapeuta António Coimbra de Matos, em entrevista ao Câmara Clara, conta um exemplo dado pelo pediatra e psicanalista britânico Donald Winnicott que é esclarecedor: havia uma criança que tinha uma perturbação do comportamento e estava muito longe de Londres, onde não havia psicanalistas.
Winnicott recomendou então que houvesse uma educadora estivesse todos os dias com a criança, trabalhando com ela e apoiando-a. Mais tarde, a propósito desse caso, escreveu que uma criança com perturbações pode curar-se se fizer psicanálise, mas também pode curar-se se houver alguém que goste muito dela.
Atualizado a: