Será que a memória fotográfica existe?
Memória fotográfica. O conceito é tão fascinante quanto curioso. Existem pessoas com uma capacidade de memorização excecional. Mas será que é mesmo possível recordar uma imagem, muitos anos depois, com tal precisão que parece que estamos a vê-la nesse preciso momento?
É curiosa, a nossa memória. Regra geral, somos incapazes de recordar o que se passou nos nossos primeiros três anos de vida – o que nos deixa na desconfortável situação de ver alguns dos nossos episódios mais embaraçosos de infância a serem recordados pelos nossos pais, sem que saibamos se tal nos aconteceu mesmo. Da mesma maneira, à medida que envelhecemos vamos perdendo alguma capacidade de memorizar a curto prazo, embora até sejamos capazes de nos lembrarmos de um qualquer acontecimento de quando éramos novos, com uma precisão impressionante.
Diz-nos a intuição que uma memória “fotográfica” é, passe o pleonasmo, como uma fotografia: conseguimos recuperar uma determinada imagem do álbum de memórias que é o nosso cérebro e examiná-la em detalhe, com um pouco de sorte até fazemos zoom in ou zoom out na nossa mente, como nos der jeito.
Ao contrário do que se poderia pensar, a memória não é uma espécie de gaveta que temos no nosso cérebro que simplesmente abrimos quando precisamos de relembrar qualquer coisa. É um processo complexo, que ocorre um pouco por todo o cérebro.
O que parece ser uma única memória é, na verdade, uma construção complexa.
Lisbeth Salander, a hacker protagonista da trilogia Millenium, criada por Stieg Larsson, tem memória fotográfica. Robert Langdon, o protagonista de O Código Da Vinci, de Dan Brown, tem memória fotográfica. Mas que estranho superpoder será este que tantos heróis de ficção parecem ter? Não querendo desiludir os mais esperançosos, a verdade é que é bem possível que a memória fotográfica não passe disto mesmo: um superpoder; uma ficção. Existem, sem dúvida, pessoas com uma memória excecional. Mas a verdade é que esta capacidade excecional requer mais do que uma simples capacidade inata.
Rui Carreteiro, psicólogo e autor do livro Manual de Neuropsicologia Clínica, explica-nos que a memória eidética (cuja origem etimológica vem do grego “eidos” – visto) consiste na capacidade de lembrar acontecimentos, sejam eles registos visuais ou auditivos, com uma minúcia surpreendente. Geralmente, os registos visuais são os mais prevalentes, o que talvez justifique o facto de popularmente este tipo de memória ser tratada como fotográfica. Mas memórias não são uma coisa fixa, quieta – como a ideia de memória fotográfica nos poderia fazer pensar.
Como nos revela Rui Carreteiro, “existem questões biológicas que influenciam uma boa ou má memória. Mas como quase tudo, uma boa memória precisa de ser treinada e cultivada. As pessoas que exercitam a sua memória tendem a ter melhores capacidades mnésicas que as restantes”. Ou seja, podemos até ser capazes de recuperar determinada memória com grande precisão, mas há razões que justificam esse nível alto de precisão.
Há sem dúvida pessoas com uma memória deveras impressionante. Recentemente, o norueguês Magnus Carlsen foi coroado campeão do mundo de xadrez, com apenas 22 anos (tornando-se o segundo campeão mundial mais novo de sempre, a seguir a Garry Kasparov). Carlsen já foi inclusive tema de reportagem no norte-americano 60 Minutes, da CBS. Tem, para lá de qualquer dúvida, uma capacidade de memória excecional. É capaz de disputar vários jogos de xadrez ao mesmo tempo, tem memorizadas milhares de jogadas – e respetivas possíveis consequências. Mas a sua incrível memória para o xadrez não surgiu do dia para a noite. Aos 5 anos o pai já o estava a ensinar a jogar. Aos 13 anos era já profissional. A experiência (a repetição) tem sem dúvida a sua influência.
Dominic O’Brien é outro exemplo. Oito vezes campeão mundial de memória, lançou um livro intitulado Uma Memória Espantosa, onde nos conta como trabalha a sua quase perfeita memória. Mais uma vez, parece haver algo de natural na capacidade de memorização e Dominic, capaz de decorar sequências numéricas impressionantes, e repeti-las sem qualquer falha. Mas à medida que vemos as dicas e conselhos de treino que o autor nos dá, percebemos que Dominic não é apenas alguém que já tinha uma memória incrível. É também um homem disciplinado, que dedica horas diárias ao exercício de memorização, usando para tal diversas mnemónicas.
O que influencia a nossa memória
Rui Carreteiro explica-nos que há diversos fatores que influenciam a nossa memória. A atenção, por exemplo, é um elemento a ter em conta. “A memória depende da quantidade de informação recebida e da atenção do sujeito” – e aqui a curiosidade é que demasiada informação será contraproducente.
Em primeiro lugar, temos de ter em conta que pode haver fatores bioneurológicos. Nestes incluem-se por exemplo doenças degenerativas, possíveis infeções, acidentes que possam ter causado lesões, ou seja, falamos de qualquer possível alteração física.
Existem também fatores psicológicos. “A situação motivacional e emocional do sujeito tem de ser considerada na avaliação dos rendimentos mnésicos dos sujeitos”, diz-nos o especialista. O nosso estado emocional, o nosso nível de motivação, também tem influência na forma como consolidamos certas memórias enquanto esquecemos outras. – e isto talvez nos ajude a perceber porque é que esquecemos com alguma facilidade a matéria que “marrámos” durante horas na semana anterior para um exame, enquanto ainda nos lembramos do que tínhamos vestido no nosso primeiro encontro.
Mas tratando-se do nosso complexo cérebro, teremos também de ter em conta possíveis alterações de outras funções (linguagem, concentração, entre outras), fatores sociodemográficos (a idade, o sexo, o nível educacional também têm influencia na nossa capacidade de memorização) e, por último, até as características do que se pretende memorizar. Ou seja, se é de natureza auditiva, visual, olfativa, tátil, se é mais ou menos abstrato ou complexo.
Para termos uma ideia mais precisa, uma das estratégias de memorização do campeão de memória Dominic O’Brien é o uso de rimas para se lembrar de números. Um exemplo adaptado do livro: 1 (atum), 2 (bois), 3 (chinês)…, 7 (alfinete). Se tiver de se lembrar do que tem de apanhar autocarro 73 para ir ter a casa de um amigo, em vez de se lembrar do número em concreto pode lembrar-se de um “alfinete-chinês”. É o autocarro 73, portanto.
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