Genética: o que é e o que pode fazer por nós?

O que é a genética e qual a sua utilidade na saúde.

A 14 de Abril de 2003 abriu-se a porta para uma esperança sem precedentes: o fim das doenças incuráveis. Com o anúncio da conclusão da sequenciação do genoma humano, rapidamente se imaginou que, em breve, qualquer cancro seria curável, o Alzheimer travado, as doenças raras um acontecimento do passado. Quase dez anos depois, que balanço é possível? O que realmente mudou? Em suma, o que pode a genética fazer por todos nós?

O Projeto Genoma Humano (PGH) foi fundado em 1990 num esforço internacional que envolveu, durante mais de uma década, milhares de cientistas, centenas de laboratórios e centros de pesquisa e um orçamento de milhões.

Poder-se-ia dizer que o comum dos mortais colocou nesta descoberta uma expectativa demasiado elevada, mas a verdade é que não estava sozinho nessas esperanças. A comunidade científica em geral e os responsáveis do Projecto Genoma Humano em particular deixavam também transparecer todo esse “sense of possibility”. No seu comunicado à imprensa, o PGH não foi de todo contido nas palavras escolhidas para este anúncio: afirmou que havia finalizado a descodificação de “todos os capítulos do livro de instruções da vida humana”, adiantando que tal permitiria “avanços revolucionários nas ciências biomédicas e no bem-estar da humanidade.”

No mesmo ano em que este anúncio efusivo era feito, 2003, Emma Duncan foi diagnosticada com cancro na mama. A avó tinha morrido da mesma doença, aos 42 anos; a mãe também, aos 32 anos. E Emma não sabia na altura, mas herdou da mãe uma mutação genética rara, uma duplicação do gene BRCA1, que aumentava significativamente as hipóteses de também ela ter cancro. E teve. O primeiro diagnóstico de cancro na mama surgiu quando tinha 29 anos, o segundo aos 31, o terceiro aos 33. Três vezes sobrevivente, arriscou ser mãe e passar uma herança genética pesada ao filho porque depositava muita fé nos avanços da ciência, e agora perguntar-se como e quando é que a genética os pode ajudar.

E nós também. Todos nós. Doentes crónicos, irmãos de doentes oncológicos, pais de filhos com doenças raras, filhos de pais com doenças degenerativas, amigos de quem luta contra doenças autoimunes. A todos nós – que de alguma forma temos doenças presentes na nossa vida – interessa a resposta à pergunta: o que é que a genética pode realmente fazer por nós?

 

Genoma, Cromossomas, Genes e ADN – uma clarificação

Já lá iremos, à resposta à pergunta anterior. Antes disso, impõe-se uma definição de conceitos. Na verdade,apesar de todos ouvirmos falar e usarmos com frequência palavras como cromossomas, genes, DNA * e herança genética, nem sempre as usamos com propriedade. Na verdade, muitas vezes não sabemos bem do que estamos a falar…

O que é o genoma? O genoma é o conjunto de informação contida no nosso ácido desoxirribonucleico – mais conhecido por DNA – um composto orgânico em cujas moléculas o nosso material genético está armazenado. Toda e cada uma das células do nosso corpo, sejam células de pele, cabelo, sangue ou órgãos, carrega consigo informação exatamente igual. E é esta informação contida no DNA que coordena o desenvolvimento e funcionamento de todas as células e do corpo como um todo. Os segmentos de DNA que contêm a informação genética são denominados genes. E, surpreendentemente, não temos todos o mesmo número de genes, muito embora a média seja cerca de 21 mil.

*apesar de existir em português tanto nome (Ácido Desoxirribonucleico) como abreviatura (ADN, optou-se neste artigo pela utilização da abreviatura que a comunidade científica em geral considera universal: DNA

Pedimos a Beatriz Porto, doutorada em Genética Humana e Diretora do Laboratório de Citogenética do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, que nos ajude a sintetizar esta informação de forma simples. “Os cromossomas são os ‘veículos’ que transportam o DNA, com os seus genes, de pais para filhos e, dentro de um mesmo indivíduo, de célula para célula por meio da divisão celular. Assim, cada um de nós tem 46 cromossomas, tendo herdado 23 do gâmeta paterno e 23 do gâmeta materno (a chamada herança genética). Estes possuem então o DNA, que por sua vez possui porções denominadas genes, que têm um código genético que vai dar informação à célula para produzir proteínas, fundamentais para todas as funções vitais da célula”, elucida a investigadora.

Beatriz Porto esclarece-nos ainda que nem todo o DNA é codificante já que grande parte deste corresponde a uma sequência que não produz proteínas. Até há pouco tempo este DNA era considerado “lixo”, no entanto, sabe-se hoje que tem funções essenciais para a ativação dos genes e para a própria divisão das células.

 

Diagnóstico e prevenção das doenças genéticas:

Voltemos à pergunta que colocámos mais atrás: mais de uma década passada, em jeito de balanço, que impacto teve a descodificação do genoma e que diferença pode fazer este conhecimento na vida das pessoas? Na verdade, os atuais efeitos práticos destas descobertas concentram-se sobretudo no diagnóstico e prevenção, não na cura.

Beatriz Porto defende que grande impacto do projeto de sequenciação do genoma humano na prática médica prende-se com o diagnóstico e prevenção das doenças genéticas. A investigadora explica que a sequenciação do genoma, associado à grande evolução tecnológica, teve como consequência a rápida caracterização das mutações genéticas de muitas doenças para as quais ainda não se conhecia a causa.

“Isto proporcionou um incremento extraordinário na oferta de testes genéticos, quer diagnósticos quer preditivos. (…) E um dos aspectos mais relevantes ligados à sequenciação está na quantidade de informação que pode ser obtida com cada teste. A possibilidade de sequenciar um genoma completo permite a caracterização de vários genes ao mesmo tempo, o que vai ser muito importante para diversas doenças em que a causa não está na alteração de um único gene (as chamadas doenças monogénicas) mas em vários genes ao mesmo tempo”, esclarece.

Na verdade, um dos campos nos quais mais diferença se pode encontrar nos últimos anos é a área do diagnóstico pré-natal. Sofia Dória, doutorada em Biomedicina, docente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigadora na área da citogenética e do diagnóstico pré-natal, avança-nos que, no futuro, a amniocentese, ou seja, a colheita de liquido amniótico para realização de cariotipo fetal, poderá deixar de fazer sentido e ser substituída por uma colheita de sangue materno (teste não invasivo, não implicando riscos para o feto)e que permitirá a realização do estudo pré-natal por análise de ADN fetal presente no sangue da mãe.

o que é a genética“Esta técnica é, hoje em dia, já uma realidade, sendo possível determinar, por exemplo, precocemente (a partir 7 semanas) o sexo genético do bebé e a presença das trissomias dos cromossomas 21, 13 e 18. A possibilidade de sequenciação completa do genoma fetal deverá ser possível em breve, mas levará algum tempo até que o custo da técnica se torne compatível com os valores aceitáveis para um exame de diagnóstico que possa ser suportado pelo Sistema Nacional de Saúde”, revela Sofia Dória.

Mas a investigadora lembra também que as questões éticas que daqui decorrem têm de ser avaliadas. Muito embora este estudo pré-natal fosse, por um lado, uma mais-valia para certas patologias ou predisposições, como a diabetes, porque seria possível modificar o estilo de vida e a alimentação, de forma a prevenir ou atrasar o aparecimento de sintoma; por outro lado, saber-se à nascença qual a nossa herança genética pode, sem dúvida, conduzir a comportamentos obsessivos, condicionando de forma muito negativa a nossa vida.

E os próximos 10 anos?

Apesar do campo da genética estar mais desenvolvido no que toca ao diagnóstico, foi recentemente aprovada na Europa a comercialização do primeiro medicamento que tem por base a terapia genética, usado para tratar a deficiência de lipoproteína lipase (LPLD), uma doença rara que provoca uma inflamação grave do pâncreas.

Apesar de muito investigada, a terapia genética tem sido pouco divulgada e, na opinião de Beatriz Porto, a cautelosa divulgação tem uma razão de ser: apesar dos efeitos se mostrarem muito positivos, estamos na maioria dos casos a falar de um funcionamento numa base individual e muitas vezes no campo da investigação. “A sua aplicação como opção terapêutica generalizada ainda vai demorar muitos anos”, conclui a investigadora.

A terapia genética pode funcionar de duas formas distintas: uma que consiste em introduzir no organismo um gene funcional para substituição do alterado e outra que se baseia num tratamento com anticorpos que vão inibir a função do gene alterado. “Este último tipo tem tido um grande sucesso nos últimos anos e irá seguramente evoluir muito nos próximos anos, sobretudo na área do cancro”, entende Beatriz Porto.

De resto, o cancro será mesmo uma das áreas nas quais maior número de pessoas deseja profundamente uma descoberta que revolucione as suas vidas. Mas como refere Sofia Dória, apesar de se ansiar por essa descoberta de grande impacto, em princípio não estaremos nunca a falar de uma única descoberta, mas sim o resultado da investigação dos múltiplos grupos que trabalham nessa área.

Para onde caminhamos nos próximo dez anos? Beatriz Porto acredita que caminhamos no sentido da evolução da medicina personalizada: a sequenciação do genoma humano trouxe muita informação acerca da grande variabilidade entre pessoas, pelo que a evolução das terapias de acordo com as diferenças individuais pode ajudar muito nos casos em que uma terapia tradicional não é eficaz.

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